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Em decisão inédita, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) reconheceu um casamento homoafetivo com efeitos jurídicos retroativos a 4 de novembro de 1983 — data em que o casal iniciou sua união, muito antes de qualquer previsão legal que garantisse esse direito. Trata-se de um marco jurídico raro, que reconhece a existência e a legitimidade de uma relação que começou em um tempo em que o amor entre pessoas do mesmo sexo era invisível para o ordenamento jurídico.
O processo, que tramita sob sigilo, foi conduzido pelos advogados militantes Maria Eduarda Figueiredo Mançano e Lucas Mançano. Por conta do segredo de justiça, os nomes dos autores da ação não são revelados nesta reportagem. Segundo os advogados, a decisão não apenas reconhece a união estável como casamento, como também valida, de forma retroativa, todos os efeitos civis e patrimoniais desde a década de 1980. “A relação do casal já preenchia, desde 1983, todos os elementos de uma entidade familiar: convivência pública, contínua, duradoura e com intenção de constituir família”, explica o advogado Lucas Mançano que possui atuação destacada nas áreas cível, de família e administrativa.“O desafio foi demonstrar juridicamente que a data escolhida pelo casal, ainda que anterior à Constituição de 1988, deveria ser respeitada e protegida”, completa Lucas.
A demanda teve início quando o casal tentou converter a união estável em casamento por meio do cartório. No entanto, foram informados de que a certidão só traria a data atual da solicitação, sem considerar os mais de 40 anos de convivência já vividos. Diante dessa limitação, buscaram apoio jurídico para garantir o reconhecimento pleno da história que construíram juntos.
Reconhecimento e sua importância simbólica
Entre as provas apresentadas, destaca-se uma escritura pública de regulação patrimonial, na qual os companheiros declararam formalmente viver em união desde 1983. Também foram anexadas cartas, fotografias, comprovantes de residência em comum e documentos de bens adquiridos conjuntamente. Segundo os advogados, a robustez das provas afastou inclusive a necessidade de produção de prova testemunhal. “Foi fundamental defender não só o tempo da união, mas também a importância afetiva da data escolhida por eles”, afirma advogada Maria Eduarda. “A decisão protege essa história com a dignidade que ela merece”, destaca a advogada.
O reconhecimento da união com efeitos desde 1983 representa mais do que uma vitória jurídica. Ele simboliza um gesto de reparação histórica às famílias homoafetivas que, por décadas, foram deixadas à margem das leis brasileiras. Em 1983, o país ainda vivia sob os resquícios da ditadura militar, e os direitos civis da população LGBTQIA+ eram praticamente inexistentes. O primeiro reconhecimento jurídico da união estável só viria com a Constituição Federal de 1988 — e, mesmo assim, voltado inicialmente apenas a casais heterossexuais. “É como se o Estado dissesse: ‘Nós vemos vocês. Nós reconhecemos o que construíram’”, resume Lucas Mançano. “Isso tem um peso emocional e simbólico imenso, especialmente quando falamos de pessoas que viveram décadas à margem da proteção jurídica”, expressa Lucas.
Impactos concretos e o papel da jurisprudência
Além do reconhecimento simbólico, a decisão tem impactos práticos significativos. No campo patrimonial, por exemplo, assegura direitos sucessórios, previdenciários e civis desde o início da relação. “Ao reconhecer que essa união produziu efeitos jurídicos desde 1983, o Tribunal afastou qualquer lacuna que pudesse gerar insegurança quanto ao patrimônio construído ao longo dessas quatro décadas”, reforça Maria Eduarda Figueiredo.
Embora não se trate de um precedente vinculante, o julgamento tem potencial para influenciar outros tribunais e contribuir para a construção de uma jurisprudência mais sensível à realidade das famílias homoafetivas. Os advogados avaliam, inclusive, formas de compartilhar o caso com a comunidade jurídica, respeitando os limites do sigilo, para que possa inspirar ações semelhantes no país. “Queremos contribuir para o debate jurídico sobre o tema, seja em artigos, palestras ou eventos acadêmicos”, destaca Lucas. “A decisão mostra que o direito pode, e deve, ser um instrumento de justiça inclusiva”, pontua.
O reconhecimento com efeitos retroativos também traz à tona o papel do Judiciário na reparação histórica de grupos invisibilizados. A decisão vai além do formalismo legal, ao considerar a realidade concreta da vida em comum como suficiente para garantir proteção jurídica integral. “Mais do que aplicar a letra fria da lei, essa decisão olha para a realidade e para a dignidade da história de vida de um casal que resistiu ao tempo e ao preconceito”, avalia Eduarda.
Os advogados reconhecem que ainda existem resistências no sistema de justiça, mas acreditam que decisões como esta sinalizam um caminho de mudança. “O reconhecimento dos direitos das famílias homoafetivas avançou muito após decisões do STF e do STJ. Mas ainda há barreiras que precisam ser superadas”, aponta a advogada Figueiredo. “Nosso trabalho é contribuir para esse avanço”, completa o advogado Lucas.
O amor venceu o tempo (e o silêncio)
A decisão foi proferida no mesmo mês em que o casal celebrava 40 anos de união. Para eles, é como se o Estado, enfim, reconhecesse não apenas uma convivência legal, mas uma vida de afeto, de compromisso e de construção mútua. Trata-se de uma resposta tardia, mas fundamental, a uma omissão histórica. E também de um símbolo de que o direito, quando aplicado com sensibilidade, pode ser reparador. “O sistema de justiça precisa estar atento às transformações da sociedade e às histórias que por muito tempo ficaram invisíveis”, finaliza Maria Eduarda. “Porque amor não tem prazo de validade, nem pode esperar o tempo da lei para ser reconhecido”, finaliza.